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In Pátio. Revista pedagogica
(Porto Alegre, Brasil) n° 23,
Setembro-Outubro 2002, pp. 8-11.

 

 

 

 

 

 

O que fazer da ambigüidade dos programas
escolares orientados para as competências ?

 

Philippe Perrenoud

Faculté de psychologie et des sciences de l’éducation
Université de Genève
2002

Sommaire

I. As competências não substituem os saberes

II. Há competências e competências

III. Levar em conta o currículo real e as desigualdades

Referências


O Brasil, o Quebec, vários países europeus (por exemplo, França, Portugal, Espanha, Bélgica) introduziram ou estão introduzindo desde o ensino fundamental programas orientados para as competências. Essas reformas curriculares :

Tudo se passa em um contexto de globalização, de mundialização e de neoliberalismo. De modo que, para uma parte da esquerda, impõe-se a conclusão : os programas orientados para as competências são uma invenção das classes dominantes e das forças conservadoras que comandam o planeta. Portanto, é preciso denunciá-los e combatê-los e, para isso, reafirmar o valor republicano dos saberes. Esquematizando, defender os saberes seria "de esquerda", propor programas escolares orientados para as competências seria de "direita".

Certamente, é justo perguntar-se o que escondem os novos currículos e a que classes sociais eles favorecem. Mas desconfiemos dos velhos esquemas. Todos os pesquisadores, todos os intelectuais e, sobretudo, todos os professores que participam das transformações dos sistemas educativos devem encontrar uma vereda entre uma imperdoável ingenuidade e uma paranóia paralisante.

Os historiadores dirão - daqui trinta ou cinqüenta anos - se os programas orientados para as competências foram uma profunda regressão na emancipação das pessoas e no desenvolvimento democrático das sociedades ou, ao contrário, um progresso. Eles dirão também quem tinha razão, entre os que combateram e os que apoiaram essas reformas.

Hoje, não temos essa distância e devemos tomar posição sem saber a que exatamente nos opomos ou nos aliamos. O mais prudente, sem dúvida, é adotar uma atitude de esperar para ver, de não se engajar, de não se manifestar. Naturalmente, essa prudência permite preservar sua virtude, mas a história não foi feita por aqueles que esperam o fim da história para tomar partido.

Não pretendo, em algumas páginas, esgotar um problema complexo, mas desenvolver três idéias :

1. A oposição entre saberes e competências não é pertinente, pois os saberes constituem o fundamento das competências.

2. Tudo depende da natureza das competências visadas no ensino básico e de sua relação com as práticas sociais.

3. Julga-se o valor de um currículo, em última instância, não por suas meras intenções, nem por sua aplicação prática, mas pela proporção de alunos para os quais elas são realizadas.

Essas três idéias não permitem por si sós decidir se é preciso combater ou apoiar os programas orientados para as competências no ensino fundamental. Talvez elas ajudem a pensar de forma menos simplista.

I. As competências não substituem os saberes

Ouve-se dizer freqüentemente que os programas orientados para as competências "sacrificam os saberes" para substituí-los por competências. Isto é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso. É verdadeiro apenas na medida em que desenvolver competências exige tempo de trabalho em classe e, conseqüentemente, obriga a fazer concessões quanto à extensão dos saberes ensinados. É nisto que reside a verdadeira escolha : pretende-se manter programas enciclopédicos, sem a preocupação de preparar os alunos para utilizá-los de outra forma que não seja sair-se bem nos exames ? Ou pretende-se ensinar menos saberes e usar o tempo para treinar sua mobilização e sua transposição para resolver problemas, tomar decisões, tocar projetos ?

Uma competência não é nada mais que uma aptidão para dominar um conjunto de situações e de processos complexos agindo com discernimento. Para isso, há duas condições a cumprir :

Enquanto a tradição enciclopédica acumula os saberes sem se perguntar muito quando, onde e porque os alunos poderão utilizá-los, o método das competências considera : 1. que os saberes são ferramentas para a ação ; 2. que aprende-se a usá-los, como as outras coisas.

Que os saberes sejam ferramentas para a ação não tem em si nada de vulgar, nem de utilitarista, no sentido pejorativo dessa palavra. A espécie humana é uma espécie atuante, o homo sapiens deseja compreender o mundo para dominá-lo, simbolicamente e na prática. A filosofia, a teologia, a geometria ou a astronomia, na Antigüidade, tinham fins pragmáticos. Uma parte das ciências contemporâneas, compreendida a pesquisa fundamental, visam dominar processos físicos, químicos, biológicos, psicológicos, econômicos ou sociais dos quais depende nossa vida na Terra. Na história da humanidade, o saber não é "meramente gratuito". O mesmo ocorre na vida das pessoas : elas se empenham em aprender para melhor antecipar, dirigir, canalizar os processos naturais, psicossociais, e mesmo sobrenaturais, dos quais dependem seus interesses. Estes últimos não são exclusivamente econômicos e materiais. A saúde, o bem-estar, o amor, a saúde, o prazer, o equilíbrio mental dependem também da maneira como agimos.

Não há nada de vergonhoso em utilizar esses saberes para agir. Não há nenhuma razão para reduzir a ação a atos "prático-pragmáticos". A ação é ao mesmo tempo cultural, educativa, política, sindical, artística, associativa, religiosa, sanitária, esportiva, científica, humanitária, etc. Sem esquecer o trabalho, a atividade humana por excelência, que seria falacioso desprezar por ser objeto de uma "exploração capitalista". O trabalho é inicialmente o meio que os seres humanos desenvolvem para dominar a natureza e produzir aquilo de que necessitam. Em suma, ligar os saberes à ação e ao trabalho está no centro da existência individual e coletiva, e somente os ricos mais inconscientes podem-se permitir desprezar essa ligação, que torna sua existência possível.

O método das competências restabelece essa evidência : é certo que os saberes são "conquistas da humanidade", mas eles têm tanto mais valor na medida em que se pode utilizá-los para dar sentido ao mundo e para orientar a ação. Pois bem, para utilizar esses saberes é preciso aprender, como qualquer outra coisa. A transposição, a mobilização, a sinergia de nossas aquisições não são dadas "fortuitamente", sem esforço. Alguém pode ter um computador e ainda não saber utilizá-lo. Do mesmo modo, nossos recursos intelectuais pessoais - saberes, capacidades, informações, atitudes, valores -, ainda que estejam instalados em nosso cérebro, nem por isso estão imediatamente disponíveis para a ação.

Isto é particularmente verdadeiro para o que se aprende na escola, pois a tradição escolar insiste na restituição dos saberes assimilados (ou simplesmente memorizados) nas formas clássicas do exame, da prova escrita ou da chamada oral, mais do que na sua mobilização na ação. As modalidades de avaliação escolar não testam a transposição de conhecimentos e a escola não prepara isto. É esse o problema que os programas orientados para as competências criticam.

Para aprender a utilizar seus recursos intelectuais próprios, é preciso que um ser humano seja levado regularmente a colocar e a resolver problemas, a tomar decisões, a criar situações complexas, a desenvolver projetos ou pesquisas, a comandar processos de resultado incerto. Se o que se pretende é que os alunos construam competências, essas são as tarefas que eles têm de enfrentar, não uma vez ou outra, mas toda semana, todo dia, em todas as formas de configurações.

Este investimento não desvaloriza os saberes, ao contrário, confere-lhes um valor adicional. Essa preocupação com o uso dos saberes contribui também, por antecipação, para dar sentido a eles, respondendo desse modo a um dos fatores do fracasso escolar. De fato, muitos alunos têm dificuldade de aprender coisas difíceis se não compreendem "para que servem". Responder-lhe "Você vai compreender mais tarde" não passa de um engodo. O método das competências cria vínculos entre os saberes escolares e as práticas sociais.

Resta saber quais ! 


II. Há competências e competências

Ao invés de travar um combate contra o conceito de competência e de demonizá-lo porque as empresas o defendem, seria melhor, antes de mais nada, dar-se conta de que as empresas modernas estão interessadas - bem mais do que a escola - em ter clareza sobre as relações entre os saberes e a ação eficaz no trabalho. O interesse pelas competências insere-se em um contexto de concorrência e de busca de produtividade. E é exatamente esse contexto que obriga a compreender melhor o trabalho humano, a inteligência no trabalho, o que, na tarefa, na organização do trabalho, nas prescrições ou na cultura do ambiente, impede ou favorece a mobilização dos conhecimentos teóricos ou procedimentais na prática. Reduzir o mundo econômico à exploração máxima de uma força de trabalho pouco qualificada já não faz sentido hoje, ainda que o capitalismo descrito por Marx subsista em uma parte do planeta. Agora, não é mais a força pura e simples, mas a inteligência dos operadores que assegura a produtividade das indústrias de alta tecnologia e do setor terciário.

Portanto, seria ingênuo combater o método das competências sob o pretexto de que o mundo econômico sonha com robôs dóceis, com autômatos bem programados. A realidade é mais complexa. As empresas têm necessidade de um investimento subjetivo, a nova organização do trabalho requer de uma parcela crescente dos trabalhadores que assumam responsabilidades, façam projetos, envolvam-se, sejam cooperativos, imaginativos, autônomos…

As empresas não são de modo nenhum desinteressadas. Não é por humanismo que elas já não esperam mais da escola trabalhadores imediatamente adaptados a um posto de trabalho, definidos e com bom desempenho em seu posto. A evolução das tecnologias e dos mercados em pouco tempo tornaria esses trabalhadores improdutivos. Naturalmente, subsistem, em particular nas regiões menos desenvolvidas do planeta, "famélicos da terra", trabalhadores que vendem sua força por um salário miserável e dos quais não se requer nem que reflitam nem que tomem iniciativas. Não é esta fração da mão-de-obra que justifica o êxito do método das competências no mundo econômico.

Portanto, a crítica deve ser mais sutil, tem de compreender que as empresas compram a inteligência, o senso de responsabilidade, o projeto pessoal e a capacidade de iniciativa, não por idealismo, mas por cálculo. Nisto reside a ambigüidade : a economia requer competências de alto nível, o que, sob certos aspectos, parece reviver as ambições mais elevadas de uma escola humanista e desejosa de dar a cada pessoa os meios para pensar por si mesma.

Por isso, é importante examinar os currículos muito de perto, para compreender que tipo de seres humanos eles pretendem formar. Seria fácil opor a autonomia ao conformismo, o espírito crítico à obediência cega. As comparações são mais delicadas quando se trata de distinguir uma "verdadeira" autonomia de uma autonomia a serviço da cultura empresarial, um "verdadeiro" espírito crítico de um espírito crítico enquadrado, excluindo de seu campo certos valores e certas práticas.

Atualmente, a leitura dos currículos deve ser feita à luz da questão : de que lado eles estão ? Tentei (Perrenoud, 2001a, retomado em 2001b) definir as competências de um ator autônomo em diversos campos sociais :

  1. Saber identificar, avaliar e fazer valer seus recursos, seus direitos, seus limites e suas necessidades.
  2. Saber, individualmente ou em grupo, criar e comandar projetos, desenvolver estratégias.
  3. Saber analisar situações, relações, campos de força de maneira sistêmica.
  4. Saber cooperar, agir em sinergia, participar de um coletivo, compartilhar uma liderança.
  5. Saber construir e estimular organizações e sistemas de ação coletiva de tipo democrático.
  6. Saber gerar e superar os conflitos.
  7. Saber jogar com as regras, utilizá-las, elaborá-las.
  8. Saber construir ordens negociadas para além das diferenças culturais.

Evidentemente, pode-se debater esta concepção da autonomia. Supondo que a consideremos aceitável e insuspeita de reforçar o poder dos dominantes (que de qualquer modo dispõem dessas competências, mesmo que a escola não as desenvolva), pode-se utilizar esse trabalho para proceder a uma análise crítica dos currículos orientados para as competências.

É claro que a autonomia não é o único desafio. Mais do que denunciar em bloco todos os currículos orientados para a competência, denunciemos aqueles que visam competências alienantes, a serviço dos poderosos e dos ricos desse mundo, competências para adaptar-se ao mundo tal como ele é, para ter seu lugar nele, para tornar-se um "agente inteligente", mais do que um ator social integral. Examinemos detalhadamente esses textos para ver se eles preparam um ser livre ou submisso.

Seria grave que os adeptos da esquerda, assustados com os fundamentos neoliberais de certos programas orientados para as competências, se tornassem guardiães do saber pelo saber. O saber dá poder apenas àqueles que aprendem a utilizá-lo nas relações sociais.

 


III. Levar em conta o currículo real e as desigualdades

Os textos não são nada mais do que textos. Pode-se ter um programa magnífico, mas cuja realização plena diz respeito apenas a uma minoria no seio de cada geração.

Na maior parte dos sistemas educativos, as finalidades da escola e as intenções subentendidas nos currículos são bastante honrosas. O ponto fraco é a enorme desigualdade em sua realização, em primeiro lugar na interpretação que se faz e que determina o "currículo real" (Perrenoud, 1995), depois, e sobretudo, nas aprendizagens efetivas dos alunos. Como sempre, são os "herdeiros", as crianças mais favorecidas que atingem os objetivos, sejam quais forem.

Talvez seja esse o grande perigo dos programas orientados para as competências : não sustentar suas promessas, como também não proporcionar sólidos conhecimentos, nem verdadeiros conhecimentos àqueles que mais necessitam deles (2001b). É por isso que os programas, sejam antigos ou novos, orientados para os conhecimentos ou para as competências, deveriam ser analisados sempre com referência aos meios dispensados para serem postos em prática com alunos que não aprendem, qualquer que seja o programa e a pedagogia. Isto passa pelo efetivo das classes, pelos equipamentos, pelos salários e o estatuto dos professores, mas também por uma organização do trabalho escolar que permita a diferenciação pedagógica - por exemplo, os ciclos de aprendizagem plurianuais - e por dispositivos de formação, de desenvolvimento profissional e de acompanhamento que apoiem a ação dos professores.

Ao invés de estigmatizar os programas, seria melhor apontar as incoerências dos governos que os promulgam e que, no entanto, não proporcionam os meios para que sejam aplicados, reforçando assim as desigualdades. Qualquer que seja o currículo, a pedagogia diferenciada e a avaliação formativa (Perrenoud, 1999c, d) continuam na ordem do dia !

 


Referências

Perrenoud, Ph. (1995) Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar, Porto, Porto Editora.

Perrenoud, Ph. (1999 a) Construir as Competências desde a Escola, Porto Alegre, Artmed Editora.

Perrenoud, Ph. (1999 b) Construir é virar as costas aos saberes ?, Pátio. Revista pedagógica, n°11, novembro, pp. 15-19.

Perrenoud, Ph. (1999 c) Pedagogia Diferenciada, Porto Alegre, Artmed Editora.

Perrenoud, Ph. (1999 d) Avaliação. Da Excelência à Regulação das Aprendizagens, Porto Alegre, Artmed Editora.

Perrenoud, Ph. (2001 a) The Key to Social Fields  : Competencies of an Autonomous Actor, in Rychen, D. S. and Sagalnik, L. H. (dir.) Defining and Selecting Key Competencies, Gottingen, Hogrefe & Huber Publishers, p. 121-149.

Perrenoud, Ph. (2001 b) Porquê construir competências a partir da escola ? Desenvolvimento da autonomia e luta contra as desigualdades, Porto, ASA Editores.

Perrenoud, Ph. (2001 b) A Pedagogia na Escola das Diferenças, Porto Alegre, Artmed Editora.

Perrenoud, Ph. (2002) A Prática Reflexiva no Ofício de Professor  : Profissionalização e razão pedagógicas, Porto Alegre, Artmed Editora.

Perrenoud, Ph., Gather Thurler, M., De Macedo, L., Machado, N.J. e Allessandrini, C.D. (2002) As Competências para Ensinar no Século XXI. A Formação dos Professores e o Désafio da Avaliação, Porto Alegre, Artmed Editora.

 

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